Hoje estava fazendo uma aula de dança de uma plataforma de exercícios online e nem estava curtindo muito, embora adore dançar. Estava achando os movimentos meio repetitivos e a aula um tanto “mecânica”, chatinha mesmo.
De repente, um ou dois passos me trouxeram lembranças das minhas aulas de ballet — embora o estilo de dança não tivesse nada a ver —, e então a aula ficou um pouco mais interessante para mim.
Fiquei me imaginando de novo em um palco e, a partir disso, foram surgindo várias reflexões e analogias do ballet com a minha vida, as quais resolvi compartilhar neste texto.
Primeiro ato
Certa vez, eu estava participando de uma oficina de produção cultural, e a facilitadora disse algo que me marcou: que não existe ex-bailarina. A dança corre em nossas veias e fica para sempre cravada na alma de quem já dançou um dia, mesmo que a pessoa não dance nunca mais.
Isso fez todo sentido para mim. Fiquei ainda mais orgulhosa dos meus 10 anos de ballet (e jazz). Sempre falo isso de boca cheia mesmo, afinal poucas atividades duraram tanto na minha vida até hoje. Logo eu, tão inconstante, que começo tantas coisas e me empolgo no começo, mas rapidinho perco o interesse.
Mas fazer ballet sempre foi um desejo ardente do meu coração. Deve ter sido uma das primeiras coisas que pedi à minha mãe. Lembro-me até hoje do dia em que ela me deu a notícia de que, finalmente, me matricularia em uma escola de dança. Eu tinha 9 anos de idade e já me sentia “atrasada”.
Meu figurino de estreia
Guardo uma vívida lembrança do meu primeiro festival — aquelas apresentações anuais realizadas em um teatro ou auditório, para as quais ensaiávamos por semanas ou até meses. Eu era uma criança bem gordinha e usei uma “fantasia” de laranja (a fruta): um collant de lantejoulas douradas com uma saia de tule alaranjada que ficava presa nas coxas por um elástico, formando uma “bola”. A piada estava pronta. Na época, fiquei com apelido de “laranjinha” entre os colegas da escola (algum deles devia estar na plateia e espalhou para o resto da turma).
Mas estava realizada com minha estreia no palco como bailarina, apesar do figurino desastroso e do “bullying” (acho que, no fundo, o apelido era até carinhoso). Anos depois, meu livro preferido do Carpinejar foi autografado por ele, que, na ocasião, me perguntou qual era meu apelido de infância para fazer a dedicatória. Então está lá na primeira página de Me Ajude a Chorar: “para Laranjinha”. (Risos. E lágrimas).
Segundo ato
A questão principal em relação ao ballet, a qual acredito que seja o reflexo da forma como eu levo minha vida, é que eu sempre gostei do palco, dos holofotes e até dos bastidores, mas não tanto de ensaiar, e menos ainda de fazer aula (tinha meus altos e baixos), que, digamos, é a etapa mais importante de preparação.
O ballet exige disciplina — e estou longe de ser uma pessoa disciplinada, infelizmente (hoje, sofro ainda mais com as consequências disso). Muitas vezes, eu não fazia o coque direito (só prendia o cabelo pra cima de qualquer jeito), não usava uniforme completo, esquecia a sapatilha e tinha que fazer aula descalça ou de meia (às vezes, furada), conversava durante a aula, saía no meio para atender o celular (principalmente na época dos “namoradinhos”), faltava aos ensaios, chegava atrasada, enfim… Dei trabalho para minha professora, que era bem rígida, mas sobretudo muito competente e querida, por quem guardo enorme carinho.
Ela bem que tentou me colocar na linha… Tive a pachorra de sair no meio de uma reunião com a turma, que era justamente para falar sobre disciplina (provavelmente estávamos naquela época de “hormônios aflorados”), para atender a uma “chamada muito importante”.
Na minha imaturidade, não conseguia fazer a relação direta entre todos aqueles comportamentos e o desempenho que alcançamos, bem como os resultados que conseguimos atingir ou não. Também não reconhecia a importância de uma aula bem feita, com exercícios de barra, centro e diagonal, treinando e repetindo os movimentos para depois fazer uma apresentação bonita e bem executada.
Afinal, uma coreografia bonita é feita de uma combinação de belos pliés, grand jetés, fouettés e outros. Quem assiste, tem a impressão de que é algo que simplesmente “flui” (e a beleza mora em fazer parecer que é fácil mesmo), mas há muito trabalho duro por trás de todos aqueles saltos e piruetas.
Não me esqueço das aulas de alongamento às sextas-feiras, em que ficávamos meia hora com as pernas abertas na parede e dávamos crises de riso (nervoso) de tanta dor nos músculos e, principalmente, nos ligamentos. A flexibilidade também é essencial para o ballet — e para a vida —, e dificilmente é desenvolvida sem dor — o que também vale para ambos.
O gosto pelo palco
Quando chegava o dia do festival, eu me realizava: ir logo cedo fazer a maquiagem (às vezes horas antes do evento), ficar o dia inteiro com quilos de base na cara e cuidando para não sair nem borrar. Depois, ficar mais umas boas horas nos “camarins” (a maioria deles eram meio improvisados, na verdade — coisas de cidade do interior) fofocando/conversando, aquecendo/alongando e compartilhando nossos lanches enquanto esperávamos a vez de cada turma se apresentar.
Ou, então, a correria das trocas de roupa quando se dançava muitas coreografias em um mesmo festival (para mim, isso era o auge, sentia-me muito importante!). Por fim, o burburinho e o frio na barriga da coxia, minutos antes de entrar no palco para o momento de brilhar — ou não — depois de tanta preparação e, então, receber os aplausos, depois abraçar as colegas e professoras no encerramento, com a sensação de missão cumprida.
Tudo aquilo era uma festa para mim. Acredito que a expectativa para aquele fim de semana (geralmente, eram dois ou três dias seguidos de apresentação), que acontecia uma vez por ano, como mencionei, possa ter contribuído para me “segurar” no ballet um mês após o outro. Claro que havia também outros fatores envolvidos, principalmente afetivos (criei muitos laços de amizade incríveis por meio da dança), e também o quanto, no fim das contas, apesar da minha “rebeldia”, aquela atividade me fazia bem.
Outra coisa que pode ter contribuído para a minha permanência foi a variação de estilos que foram sendo incorporados à minha prática. Eu comecei com o ballet clássico, depois me matriculei no jazz e, nos grupos avançados, também dançávamos moderno (meu preferido) e contemporâneo. Ironicamente, eu costumava ter resultados mais satisfatórios no clássico — embora fosse o mais desafiador para mim —, talvez por ter sido o que pratiquei por mais tempo.
Intervalo
Muitas vezes, pensei em largar ou sair. Ora porque havia começado a jogar basquete ou vôlei e me empolgava com essas outras atividades, ora porque não tinha conseguido bons resultados no semestre do ballet (a gente tinha até boletim de avaliação), e então não conseguia passar de nível/avançar para a turma seguinte.
Lembro-me de um dia em que estava no vestiário me trocando para aula e comentei com uma colega que eu estava bem desanimada e apenas permanecia na dança porque desejava muito chegar ao “grupo juvenil” (uma espécie de preparação para o grupo principal) e, posteriormente, ao grupo principal da companhia.
Na contramão de praticamente todas as outras coisas que já fiz (ou quis fazer) na minha vida, eu inventava desculpas para permanecer — e não para desistir. E, de fato, consegui cumprir esse objetivo e chegar a fazer parte do grupo principal. Mesmo com todos os percalços, essa foi sem dúvidas uma das melhores experiências da minha vida.
Além dos festivais, havia as viagens para apresentações e competições de dança em outras cidades. Se não me falha a memória, eu fui em apenas uma, mas que foi bem especial e inesquecível para mim. Ganhamos alguns prêmios, passeamos, nos divertimos e eu dividi quarto com minhas melhores amigas do ballet (Tali e Gabi). Um dia, filosofando em nosso quarto de hotel (provavelmente até altas horas da madrugada), nós três chegamos a duas conclusões, que viraram máximas na minha vida: “É tudo por amor” e “Uma vírgula muda tudo”, hahaha. ❤
Terceiro ato
Cada festival tinha um tema, e felizmente usei vários figurinos bem melhores que aquele primeiro (o que não era assim tão difícil, né?). O mais marcante para mim foi tutu bandeja (aquela saia toda armada, dos clássicos) cor-de-rosa com aplicações em renda lilás — quem me conhece sabe da minha paixão por essa cor.
Sonhava em usar um porque é o figurino que compõe o arquétipo perfeito da bailarina — junto com a sapatilha de ponta . Usei-o quando dancei o clássico de repertório La Bayadère, mais um grande desejo realizado. Os ballets de repertório são espetáculos consagrados — como O Lago dos Cisnes e Dom Quixote, dois dos mais famosos —, criados por coreógrafos célebres, e que narram uma história com início, meio e fim, como se fosse um “teatro dançado”. Eu também adorava interpretar — cheguei a fazer aulas de teatro uma época —, mas isso já é assunto para outro momento.
Só me arrependo de uma coisa: não ter aproveitado ainda mais essa experiência como um todo. Fico pensando que, se tivesse levado a sério e me dedicado pra valer, poderia ter me aperfeiçoado mais — na dança e na vida. Poderia ter dançado um solo, realizando outro grande sonho que eu tinha, ou quem sabe até um duo, já que eu também babava nesse tipo de coreografia. Mas não me empenhei o suficiente para isso, afinal, só as bailarinas mais aplicadas e com melhor desempenho eram escolhidas.
Poderia, talvez, ter ocupado mais lugares de destaque no palco (a aspiração de quase toda bailarina é “marcar meio”, ou seja, ocupar a posição central/de destaque na coreografia). Mas para isso existia um longo caminho, que eu não estava tão disposta a percorrer, pelo menos não com a intensidade e consistência necessárias para tal.
De modo geral, essa postura comprometeu meu desenvolvimento na parte técnica — eu tentava me garantir na “paixão”. Às vezes funcionava, às vezes não, afinal a dança é uma forma de arte, que também exige “entrega”, emoção e expressividade — e era assim que eu compensava minha indisciplina (como faço até hoje, inclusive com a escrita).
O momento da queda
Continuo me comportando dessa maneira em diversas situações: querendo me destacar sem fazer o requisito. Não tenho paciência de passar pelas etapas do processo, principalmente para encarar as partes que são mais chatas para mim e superar aos poucos minhas limitações, dificuldades e desafios.
Perdi a chance de aprender a fazer isso com a dança nesses 10 anos e, às vezes, ainda me pego revoltada ou indignada por não obter os resultados ou a valorização e o reconhecimento que almejo, embora tenha plena consciência de que só estou colhendo (ou deixando de colher) o que (não) plantei.
Um episódio que me marcou e pode explicar muita coisa: estava eu em um (não tão) belo dia na porta do estúdio de dança esperando meus pais me buscarem após a aula. Gravei bem o momento exato em que tive o seguinte pensamento: “ah, mas eu também não preciso ser a melhor em tudo o que eu faço” (estava me referindo ao basquete e ao vôlei, mas principalmente ao ballet).
Provavelmente, naquele dia eu estava frustrada com algo que aconteceu na aula. Talvez não tenha conseguido executar bem algum passo, não tenha sido selecionada para ensaiar alguma coreografia de que gostaria de participar ou, quem sabe, tenha ficado em uma posição menos privilegiada (mais atrás/escondida) em alguma montagem.
E partir daí, fui só ladeira abaixo. Porque, de fato, eu não precisava ser sempre a melhor em tudo, mas a partir daquele momento eu tenho a impressão de que deixei de dar o MEU melhor nas coisas que me propunha a fazer.
Eu também tinha (e tenho) uma grande dificuldade de me comprometer com algo e abrir mão de todo o resto. Temia que se mergulhasse de cabeça na dança, por mais que fosse algo que eu amava, eu poderia “perder a liberdade” de experimentar outras atividades, desde modalidades esportivas diferentes até as festinhas e “resenhas” fora daquele ambiente do ballet.
Sempre tive múltiplos interesses, habilidades, paixões e, nessa ânsia de provar um pouco de tudo (ou medo constante de estar “perdendo algo”) — alguém mais aí sofre de FoMO? —, acabo me perdendo, deixando de me aprofundar e de desenvolver ao máximo algumas potencialidades específicas para ficar “pulando de galho em galho”.
Encerramento ou ato final
De toda forma, sou muito grata por tudo de maravilhoso que o ballet me proporcionou, por ter conseguido permanecer por tanto tempo, ainda que do meu jeito meio torto, até chegar ao meu objetivo de integrar o grupo principal . Essa mania de supervalorizar meus erros e fracassos ou de focar na “insuficiência” também é uma característica que se estende por praticamente todas as áreas da minha vida até hoje.
Talvez eu possa começar fazendo as pazes com esse capítulo tão extraordinário da minha história, me perdoando pelo que não fiz (ou não fiz da maneira que gostaria de ter feito) e olhando para minhas conquistas pessoais sem me comparar tanto (minhas “bests do ballet” eram foda e bem mais aplicadas que eu, então não posso nem dizer que sofri algum tipo de “má influência” nesse sentido, pelo contrário).
Hoje, a Musa (escritores, artistas e criativos em geral me entenderão) me tirou pra dançar , literalmente. Aceitar esse convite sem pestanejar pode ter sido um bom (re)começo. O próximo passo agora é passar a me comprometer de verdade com as coisas que quero realizar ainda, sem fugir da dor e dos perrengues inevitáveis para ter bons resultados e chegar aonde quero — e sem negar os processos, de modo que eu possa ter histórias ainda melhores para contar, cantar e dançar.
P.s. escrevi esse texto ouvindo uma playlist maravilhosa de músicas internacionais antigas/clássicas (estilo trilha sonora de filme), o que me inspirou ainda mais.
P.p.s. alguns dias após ter escrito este texto, pouco antes de publicar, estava fazendo uma caminhada e tive outro “lampejo” como aquele de anos atrás na porta do estúdio de dança. Dessa vez, a mensagem que chegou foi a seguinte: “continue fazendo o melhor que você pode/consegue, mesmo que ninguém esteja vendo (ou você ache que não). Tudo pode mudar!”. Sei que parece clichê e até papo de “coach motivacional”, haha, mas foi assim mesmo que veio e, no momento, achei que fez sentido.